Concerto de amadores

, 1882

Columbano Bordalo Pinheiro

Óleo sobre tela
220 × 300 cm
assinado e datado
Inv. 498
Historial
Oferta do artista à Condessa de Edla, esposa morganática do rei D. Fernando II, após o financiamento dos seus estudos em Paris. Envia-o para Lisboa, via Havre, com custos de transporte de 168 000 réis e uma percentagem avultada, reclamada pela alfândega portuguesa, correspondente à elevadíssima verba de atribuição de seguro pelo artista, 60 000 francos, embora o valor final, depois de um ano na alfândega e de contínuas diligências, descesse para os 225 francos. Vendido, em leilão, em 92, a Aires de Campos, 1º Conde do Ameal, coleccionador de Coimbra. Adquirido pelo Estado no leilão desta colecção e integrado no MNAC em 1921.

Exposições
Paris, 1882, 318; Lisboa, 1884, 310; Lisboa, 1892, 344; Lisboa, 1921, 32; Paris, 1931, 52, p.b.; Lisboa, 1932, 52; Lisboa, 1957, 9; Lisboa, 1980, 12, cor; Madrid, 1985, 45, p.b.; Paris, 1987, 186 cor e p.b.; Lisboa, 1988, 186, cor e p.b.; Lisboa, 1994, 56; Lisboa, 2005; Lisboa, 2007.

Bibliografia
ARTHUR, 1896, 77 – 78; PESSANHA, 1897; AZEVEDO, s.d., 26, p.b.; “A história de um quadro (...)”. DN, 1921; PARIS, 1926, 848; Pintura portuguesa no MNAC (...), 1927, 15, cor; L’ Art Portugais (...), 1931, 52, p.b.; BRAGANÇA, s.d. (c. 1936), 13; Portugal: A arte, os monumentos (...), s.d. (c. 1936), 9, p.b.; ALDEMIRA, 1941, pp. 31 e 32; MENDES, 1943, 54, p.b.; LACERDA, 1945, 1 – 2; MACEDO, 1945, capa, p.b.; MACEDO, 1952; MACEDO, 1953, 536, p.b.; PAMPLONA, 1954, vol. I; BOTELHO, 1957, p.b.; Jornal do Comércio, 1957, 5, p.b.; LUCENA, 1957, 28 – 29; FRANÇA, 1967, vol. II, 210 – 211, p.b.; FRANÇA (et al.), 1973, 94, cor; Portuguese 20th century artists: a biographical dictionary, 1978, pl. 104, p.b.; FRANÇA, 1979, 31, p.b.; Columbano, 1980, capa, cor; FRANÇA, 1981, 72; 100 obras maestras (...), 1986, 193, p.b.; MATIAS, 1986, 92, cor; FRANÇA, 1987, 38, cor; PAMPLONA, 1987, vol. II; FRANÇA e COSTA, 1988, 226, cor; LAPA, 1994, 108, cor; SILVA, 1995, 344; FRANÇA, 1998, 368; ELIAS, 2002, 91 ss.; FALCÃO, 2003, 179; Columbano Bordalo Pinheiro, 1874 – 1900, 2007, 91.
Soirée chez lui ou Concerto de amadores foi realizado para o Salon de 1882 e constitui um momento cimeiro da obra de Columbano. O esquema da composição foi longamente estudado e teve uma génese ampla. Num desenho intitulado Ensaio do quarteto do Rigoleto de 1877, descoberto por Varela Aldemira, discípulo do artista, representou Columbano uma reunião em casa de seus pais, em Alcolena, onde se encontram algumas figuras de pé, cantando e que precedem uma outra, sentada, a tocar piano. Ao fundo surge Columbano ainda muito novo e já de lunetas, a desenhar. No esquema geral da composição a figura de um cantor gordo, que ocupa o centro do desenho, antecipa o que virá a acontecer em Soirée chez lui. Também num dos desenhos preparatórios para o quadro aparece uma figura feminina, de escorço, sentada ao piano tal como a do Ensaio do quarteto do Rigoleto. Outra obra a situar nesta genealogia é O sarau. O tema é semelhante, ainda que menos íntimo. Também o centro é ocupado pelas figuras femininas que cantam, próximo da pianista. O jarrão que serve de motivo decorativo nesta obra será transportado para o Soirée chez lui de modo mais sombrio. Ainda na continuidade da recensão genealógica da pintura, cabe uma menção a A luva cinzenta, pois que a figura feminina pintada de escorço com saia de cetim é a própria irmã, Maria Augusta. O seu busto apresenta uma composição e iluminação quase idênticas às do referido quadro. A luva cinzenta será então uma espécie de enquadramento mais cerrado desta figura.
Outra obra directamente relacionada com esta é o estudo provavelmente realizado antes da tela final. Aí encontramos já as cinco figuras da pintura final, a composição é muito semelhante, apenas o ponto de vista está um pouco mais deslocado para a esquerda e eventualmente mais afastado. O interesse maior deste estudo reside no facto de ele dar continuidade às experiências mais ousadas de uma fase anterior e radicalizá-las em absoluto. Se o fundo é escuro, a luz é dada pelas manchas informes de tinta, totalmente planas, que constroem a pintura erradicando qualquer sugestão académica de claro-escuro. Os momentos mais ousados e modernos, que O convite à valsa descobria, estão aqui presentes de forma mais livre sem preocupação de definir a anedota. A pintura transforma-se numa superfície dada ao ritmo do desenvolvimento das manchas cromáticas. A lição de Manet é declaradamente assimilada, mas infelizmente relegada para a informalidade de um estudo. No entanto, a sua realização configura a obra mais moderna que a pintura de oitocentos portuguesa viria a conhecer.
Para além deste puzzle da migração das figuras e respectivas variações compositivas, que se definem dentro de um mesmo tema, o seu tratamento é o mais íntimo quando comparado com as anteriores realizações, quer pelo número mais reduzido de figuras, quer pelo tratamento da luz sombria e penumbrosa. Da esquerda para a direita figuram a sua irmã, Adolfo Greno, um cantor italiano, Josefa Greno e Artur Loureiro sentado ao piano. O claro-escuro, retomado nesta fase da obra de Columbano, é distribuído de forma violenta e contrastada com os negros do fundo sombrio, que se misturam com outros adereços e os apagam num negro sobre negro. O cetim da saia de Maria Augusta, pode ser comparável, como demonstrou Margarida Moura Elias (ELIAS, 2002, 93), à saia da cigana de El Jaleo: Dance des gitanes (1882) que John Singer Sargent também expôs nesse ano no Salon. O timbre da saia tem uma intensidade metalizada, com um contraponto de variação de intensidade no jarrão de brilho acobreado. Esta zona luminosa, que constitui a primeira impressão do quadro, encontra continuidade e gradação mais atenuada no colete do cantor, de tonalidade mais surda, e que nas pautas espalhadas pela otomana e pelo chão perde por completo qualquer valor tímbrico. Apenas esboçadas, estas omitem qualquer sentido descritivo, antes proporcionam pontuações de luz e de cor na superfície escura da pintura e autonomizam-na do naturalismo, que outros aspectos evidenciam. Entre, por um lado, a sugestão luminosa incidindo sobre superfícies representadas com virtuosismo mimético, como a da saia; e, por outro, o valor cromático puro, abstracto, dado pelas manchas matéricas, a pintura apresenta uma resolução profundamente heterogénea.
A distribuição das figuras é encadeada com um ritmo que termina na mão de Artur Loureiro, sobre o piano. No centro da composição está a mão do cantor que segura as luvas esboçadas, de modo informe e matérico. Os limites da composição traçam uma elipse correspondente aos pontos iluminados que são as cabeças das figuras, a mão do pianista, as pautas espalhadas, a saia e o jarrão. As linhas laterais da saia determinam o desenvolvimento oblíquo das pautas, que os cantores seguram e que se opõem ao perfil do cantor italiano e ao antebraço de Maria Augusta. Entre estes estabelece-se um paralelismo, rimado nas pautas e que sugere o canto a duas vozes, como, por outro lado, a mão sobre o piano e as pautas espalhadas distribuindo a luz sugerem uma fuga. Um particularíssimo jogo de luz – diferente da luz rasante que se manifesta nas pautas espalhadas ou nas roupagens das figuras – é criado a partir da vela acesa do piano, cuja chama é ocultada e espalha sobre o rosto de Josefa Greno uma luminosidade com
um sombreado evocador de uma situação característica da pintura de Georges La Tour. O rosto tem por sua vez um modelado completamente diverso dos outros. O seu entendimento não é naturalista, pois que o tratamento dos volumes das pálpebras, as proporções e inclinação sugerem a memória de um rosto de uma virgem de Morales.
Outro aspecto curioso desta pintura é o intimismo da cena, quando transposto para as amplas dimensões que apresenta. Se o intimismo provém da continuada admiração pela pintura holandesa do século XVII, importante na formação do artista, quer caseira, quer então no Louvre. A escala deve-se a um objectivo estratégico que, segundo refere Diogo Macedo (MACEDO, 1952, 39), seria o de dar visibilidade à sua obra no meio das centenas de pinturas que o Salon apresentava. A alteração de escala, a que o tema intimista foi submetido, veio produzir uma pintura pouco comum e com uma liberdade que ultrapassou o naturalismo de escola para aceder a uma heterogeneidade pictórica, que casa referências históricas muito distintas, num desejo de construir uma pintura transhistórica. Neste sentido esta pintura poderá ser lida como um primeiro manifesto dessa vontade de Columbano, que assim orientaria a maior parte da sua produção artística. A modernidade assumida em certos detalhes passava ser um dado entre outros muito diferentes, como se os tempos históricos pudessem conviver num mesmo espaço de uma pintura, que procurava furtar-se à contingência do seu tempo.
A pintura foi recebida pela crítica do Salon com grande indiferença, apenas Louis Fourcaud, amigo de Sargent, por este retratado, em 1884, escreveu um artigo no Gaulois, na sequência da análise da pintura El Jaleo: dance des gitanes fazendo comparações com a pintura de Goya. Columbano, em nota escrita sobre o artigo, afirma: ”quando pintei o quadro a que alude este artigo, não tinha visto ainda a pintura de Goya, que só conheci em 1889, quando visitei pela primeira vez o museu de Madrid” (ELIAS, 2002, 93).
Columbano remeteu o quadro para Lisboa, dirigido à Condessa de Edla, como testemunho de gratidão pela bolsa que lhe permitiu a estada em Paris. Após inúmeros embaraços com a alfândega o quadro foi exposto na 13ª Exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes, em 1884, com o título Concerto de amadores, não sem ter sido recusado previamente, para acabar por ser exibido na sala do fundo, a dos recusados, em lugar de destaque. A crítica recebeu-o com dúvidas, como foi o caso de Monteiro Ramalho que se por um lado o achou uma “grande página de observação espirituosa da existência social, olhada pelo monóculo de um humorismo vizinho do sarcasmo”, por outro, enquanto defensor do ar-livrismo, estranhou a “ausência de luz para pincelar bocados de uma negrura terrível, opaca, misteriosa, lembrando frestas abertas para o infinito vácuo preto (...) com um prematuro ar antigo tornou-se absurdo e incaracterístico, na sua factura, como obra moderna” (O Ocidente, 1/9/1884, 195). Mais complexo e elaborado terá sido Jaime Batalha Reis que encontrava no Concerto de amadores uma obra de grande arte, uma completa evocação de um drama humano (...). Os cinco amadores que cantam nessa sala mal alumiada dão-nos a impressão intensa a um tempo, de um drama e de um conto fantástico. (...) [A] obra de Columbano é a revelação que nela se encontra do mundo fantástico do espírito humano, o mundo íntimo e visionário tirado da realidade (...). É curioso decerto, mas não é estranhável, o facto de que a única obra de arte poderosa e original que em Portugal tem produzido a pintura, obra aliás admitida no Salon de Paris em 1883 [1882], foi por um júri português rejeitada de uma exposição constituída pelas obras banais do mais banal” (Comércio de Portugal, 8/7/1884).

Pedro Lapa