entrada: Condições Gerais

Arte moderna em Portugal

de Amadeo a Paula Rego

2009-07-02
2009-11-01
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Núcleos

AMADEO DE SOUZA-CARDOSO E OS PRIMEIROS MODERNISMOS

O Modernismo surgiu em Portugal na sequência da Revolução da República, em 1910, das estadas dos artistas em Paris e das crescentes trocas de informação e contactos com as vanguardas emergentes, que esta situação proporcionou. Também a geração literária, reunida em torno de Fernando Pessoa e das revistas Orfeu ou Portugal Futurista, deu ao movimento modernista uma importantíssima amplitude e profundidade. Amadeo de Souza-Cardoso, fixado em Paris, foi o único artista que participou em algumas das mais relevantes exposições da vanguarda internacional. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial ficaria exilado no seu próprio país, ainda que acompanhado durante o ano de 1915 pelos Delaunay. Aqui desenvolveu solitariamente as experiências mais radicais sobre as novas concepções de espaço pictórico, até morrer prematuramente, em 1918. 

Depois do conflito mundial, uma segunda geração estagiou em Paris, sem participações significativas em exposições ou novas experiências e trazendo para Portugal uma modernidade conservadora, distanciada das vanguardas. Apenas Mário Eloy conheceu outras referências, em Berlim. O contexto artístico local mantinha-se “um mal-entendido sem remédio”, nas palavras de Almada Negreiros. É apenas nos meados da década de 1930 que ocorre uma assimilação superficial da modernidade, então definida por António Ferro, o seu promotor oficial tolerado pelo fascismo, nos limites de um “indispensável equilíbrio", sem “incompatibilidade entre um regime de Autoridade consciente e a arte moderna”.

Nesses anos 30, Almada Negreiros, regressado de Madrid onde fora  compreendido e estimado, desenvolve um retorno ao classicismo de matriz picassiana, dando início a uma pesquisa sobre o cânone ocidental, que ocupará o seu trabalho futuro. Simultaneamente ocorrem outras tentativas dispersas de reformulação do modernismo com novas propostas integradas no quadro das vanguardas internacionais. António Pedro, em Paris, retoma a exploração da relação entre palavra e espaço, iniciada com a geração do Orfeu, para seguidamente realizar as primeiras pinturas surrealistas, juntamente com António Dacosta. M. H. Vieira da Silva dá início às suas explorações espaciais a partir de arquitecturas imaginadas ou transfiguradas.

ALMADA NEGREIROS E OS PROJECTOS DAS GARES MARÍTIMAS

O início da década de 1940 ficará marcado pela profunda reformulação do trabalho de Almada Negreiros a partir dos frescos que realiza para as gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa.

A sua obra, oriunda de uma primeira vanguarda, constituiu um trabalho de reflexão e aprofundamento de uma síntese do desenho e da procura de um sistema de proporções comum à arte ocidental, que neste período conhece novas reformulações radicalizando algumas questões abordadas pelos primeiros modernismos. Almada é assim uma figura tutelar e referencial da vanguarda histórica que se reelabora em sincronia com as jovens gerações interessadas em complexificar a modernidade. 

Os estudos para os frescos da Gare Marítima de Alcântara foram realizados entre 1943 e 45 e representam alegorias sobre o país a partir de narrativas míticas da tradição oral da cultura popular, como sejam A nau catrineta ou D. Fuas Roupinho. Se, por um lado, é a imagem de um Portugal pitoresco de convenções e sonho que estes trabalhos representam; por outro, não menos se opõem à glorificação épica do destino nacional, que o fascismo português cultivou pela mesma época em majestosas exposições. 

Os estudos para os frescos da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, realizados entre 1946 e 49, apresentam um tratamento modernista mais assumido, dentro de uma linguagem cubista e com recurso a alguns esquemas gráficos e cromáticos de uma segunda geração futurista. Em dois trípticos, a emigração confronta-se com a cidade lisboeta à beira-rio, num domingo. A atenção às condições da vida social torna-se o motivo e a linguagem pictórica tende a geometrizar-se e a aceitar a bidimensionalidade das superfícies a par de uma distribuição cromática homogénea por planos delimitados ou através de padronizações gráficas. 

Com estes trabalhos Almada aproximava-se de questões que motivaram e dividiram novas gerações que nesses anos assumiram importante presença na cena artística nacional.

ABSTRACÇÃO GEOMÉTRICA

Estes anos, de 1945 até ao final da década seguinte, assistem à entrada em cena de uma geração jovem preocupada com um envolvimento profundo nas diferentes vias da modernidade e das suas manifestações de vanguarda. Tratou-se assim de constituir uma mais complexa elaboração dos aspectos com que as práticas artísticas se articulavam. No pós-guerra europeu, a prática da abstracção construtivista reconstituiu-se como uma vanguarda no Salon des Réalités Nouvelles de Paris e que encontrou desenvolvimentos significativos no contexto português. Foram assim os pintores abstractos geométricos que resgataram uma prática vanguardista interrompida durante três décadas com a morte prematura de Amadeo de Souza-Cardoso.

Para artistas como Fernando Lanhas, Nadir Afonso ou Joaquim Rodrigo o dado primeiro da pintura é a especificidade formal dos seus elementos estruturais. As suas pesquisas centraram-se num conhecimento essencialista da pintura e da busca de uma harmonização dos seus elementos constitutivos. Fernando Lanhas construiu diferentes cruzamentos não-ortogonais de linhas, que delimitam áreas poligonais irregulares, conferindo uma tensão e equilíbrio de formas que não excluem uma incerteza inerente à busca do conhecimento da pintura. A partir de 1949 implicou a pintura em elementos naturais como seixos cuja forma motiva a inscrição dos seus elementos geométricos. Nadir Afonso, trabalhando como arquitecto, em Paris, com Le Corbusier, partiu de formas geométricas da natureza e das suas intensidades cromáticas para operar sobre as suas relações de proporção e produzir formas complementares a partir das primeiras. Designou essa unidade formal geométrica de harmonia. As suas pinturas deste período apresentam-se como bandas onde se inscrevem ritmicamente os elementos geométricos, que se prolongam para lá dos limites da tela. Joaquim Rodrigo desenvolveu progressivamente uma procura da unidade entre a forma e o espaço matricial da pintura onde aquela se inscreve, para chegar a uma teoria da cor que lhe permitiu a unidade plena de todos os elementos pictóricos. O seu sistema de composição puramente matemática ultrapassou o tradicional modelo sensitivo e aproximou-o de problemáticas minimalistas. No domínio fotográfico, Eduardo Harrington Sena explorou de forma continuada uma visão abstracta dos complexos industriais, dialéctica entre o humano e o imaterial, numa perspectiva historicista que o aproxima, embora tardiamente, das vanguardas da “estética do metal”.

O NEO-REALISMO

Outra vertente dos artistas da geração revelada em meados da década de 40 dedicou-se a uma arte socialmente comprometida, tendo como fundamentos os princípios do materialismo histórico e a sua relação com o desenvolvimento das formas artísticas na sociedade. Para Manuel Felipe, Júlio Pomar, Lima de Freitas, Arco (Rui Pimentel), Querubim Lapa, Rogério Ribeiro as realidades sociais compungentes que o país e o mundo do pós-guerra viviam, a par de um entendimento da imagem produzido pelo cinema neo-realista ou pelas pinturas dos muralistas mexicanos, bem como o romance realista do século XIX constituíram referências significativas. Por vezes, o movimento neo-realista foi vinculado às teses do realismo socialista, mas tal só ocorreu episodicamente dada a amplitude do espectro de referências dos seus praticantes e das interpretações que delas fizeram. As Exposições Gerais de Artes Plásticas, realizadas entre 1945 e 1956 na SNBA, constituíram o principal espaço de apresentação desta corrente. Pelas críticas de Mário Dionísio, Vespeira, Lima de Freitas e Júlio Pomar o movimento neo-realista entrou em conflito aberto com outros movimentos, como a Abstracção Geométrica ou o Surrealismo, que acusaram de formalismo, individualismo e defesa “da arte pela arte”. 

Manuel Felipe, logo em 1944, realizou alguns trípticos a carvão que denunciavam a exploração do mercado de trabalho através de uma linguagem reportável aos muralistas mexicanos e ao cinema expressionista alemão. Júlio Pomar, o artista com obra mais complexa do movimento, procurou através de referências americanas, seja a Thomas Bentom, a Tamayo ou Portinari, construir dentro da espacialidade cubista uma linguagem crítica das condições sociais. 

É também no contexto das Exposições Gerais, que Adelino Lyon de Castro exibiu exemplos duma fotografia mais comprometida com o realismo social, numa fronteira sempre mal esclarecida entre naturalismo e realismo.

O Neo-realismo foi na década de 40 um lugar de encontro de uma prática essencialmente figurativa, que iria encontrar na década de 50 outros desenvolvimentos menos comprometidos socialmente, mas opostos às propostas de outras vanguardas para a modernidade.

SURREALISMOS

O Surrealismo não foi um movimento homogéneo. Teve uma primeira manifestação, em meados da década de 1930, com António Pedro e depois António Dacosta, que introduziram nos seus trabalhos a noção de inconsciente como produtor de formas ou de experimentação intersticial entre palavra e imagem. Com a sua partida para fora do país a prática surrealista praticamente se suspendeu, restando o trabalho irregular de Cândido da Costa Pinto. Em 1947 é fundado Grupo Surrealista de Lisboa, de vida curta mas o mais amplo movimento surrealista português, na sequência da ideia de André Breton de fundar grupos representativos nas principais cidades europeias. Artistas como António Pedro, António Dacosta, Mário Cesariny, Vespeira, Alexandre O’Neill, João Moniz Pereira, Fernando de Azevedo, António Domingues e o crítico José-Augusto França formam o grupo. 

Em conjunto entram em ruptura com os Neo-realistas, na 3ª Exposição Geral de Artes Plásticas, de 1948, por não aceitarem a censura prévia imposta pela ditadura a estas exposições. Se no conflito com os Neo-realistas realçavam o poder subversivo do onírico e do acaso objectivo contra uma arte socialmente comprometida, também nesse ano o grupo se divide, a partir da cisão de Mário Cesariny, dando origem a outro grupo intitulado Os Surrealistas e que contou com diversos poetas como António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Henrique Leiria, Carlos Eurico da Costa e Cruzeiro Seixas.

Em 1949 é realizada a primeira e única exposição do Grupo Surrealista de Lisboa onde são exibidos cadavres-exquis numa demonstração de que a arte é feita por todos. As pinturas apresentadas revelavam uma grande influência da primeira geração surrealista internacional (Dali, Max Ernst, Tanguy) num momento internacional de reformulação dos dados surrealistas. 

Em 1952, Vespeira, Lemos e Azevedo realizam uma importante exposição na Casa Jalco, onde são apresentadas as ocultações de Fernando Azevedo, que cobrem imagens previamente existentes revelando apenas detalhes que redefinem toda a significação. Fernando Lemos apresentou as primeiras experiências fotográficas surrealistas que operavam sobreposições, negativos e solarizações. Vespeira, a par das suas pinturas, apresentou objectos transformados. 

Os Surrealistas, para além da notável poesia, deixaram trabalhos experimentais de colagem, assemblages, técnicas próprias de pintura como as figuras de sopro ou as sismografias num todo algo indiferenciado conforme à ética de vida surrealista.

Importa ainda destacar o fantástico trabalho de dois artistas independentes com práticas surrealistas. Jorge Vieira reinventou a escultura moderna através de uma reinterpretação da escultura arcaica e também das suas figuras filiformes e abstractas em bronze; Jorge Oliveira desenvolveu uma prática surrealista síncrona das questões do pós-guerra radicalizando assim a noção de automatismo psíquico em pintura e também de paisagem onírica. 

FIGURAÇÃO E ABSTRACÇÃO

Com o fim dos movimentos surrealistas (1952) e neo-realista (1956) a década de 1950 é atravessada por uma clivagem entre figuração e abstracção, que de certa forma ocupara as discussões na Europa na década de 1930. Pintores vindos do surrealismo experimentaram então a abstracção sob o signo maior de Maria Helena Vieira da Silva. O trabalho desta artista, protagonista da Segunda escola de Paris, atinge nestes anos um reconhecimento mundial. As suas pinturas mais declaradamente abstractas desenvolvem reverberações cromáticas numa infinita construção de perspectivas labirínticas de espaços ambíguos, tal como José-Augusto França definiu esta ocupação do espaço. Noutros casos, próximos das novas problemáticas da pintura norte-americana, – como Jorge Oliveira – a gestualidade veio radicalizar o automatismo surrealista em busca do gesto como espontaneidade e traço psíquico originário. Outros pintores construtivistas continuaram o desenvolvimento das suas pesquisas e Nadir Afonso realizou em 1956 um Espacillimité cinético que expôs na galeria Denise René em Paris, no momento de eclosão da arte cinética. De forma inesperada mas não continuada, também Varela Pécurto representa a breve incursão da fotografia portuguesa pelas explorações abstractas formais da luz, mais liberta dos constrangimentos naturalistas e pictóricos, decorrentes das influências do movimento Fotoform alemão, que chegariam a Portugal pela via da fotografia de salão e dos seus circuitos internacionais.

Por outro lado, os pintores figurativos vindos das Exposições Gerais de Artes Plásticas da SNBA, onde o neo-realismo era uma linguagem dominante, ora aprofundaram as suas implicações, como foi o caso de Júlio Pomar, ora se afastaram de uma temática marxista para procurarem um realismo exterior aos cânones naturalistas e simultaneamente capaz de devolver um pathos melancólico sobre o quotidiano, como aconteceu com Sá Nogueira e Nikias Skapinakis. No início da década seguinte estes artistas iriam desenvolver, com importantes consequências, algumas das questões então enunciadas nestes anos. A prática figurativa deu continuidade a uma resistência à vanguarda herdada do Neo-realismo. A fotografia, por seu turno, apresenta duas aproximações diferentes ao figurativo, por um lado sofreu a influência do abrangente “humanismo francês”, a que Gérard Castello-Lopes e Carlos Afonso Dias se dedicaram de forma tutelar, enquanto que Victor Palla, em conjunto com Costa Martins, com o seu projecto Lisboa, cidade triste e alegre, impunham uma nova linguagem visual para a fotografia portuguesa, súmula de influências múltiplas, desde o cinema à literatura. Ao purismo do fotograma integral, que Gérard e Carlos Afonso Dias haviam defendido, Victor Palla contrapunha os conceitos de montagem, corte, associação e edição.

A obra de Joaquim Rodrigo sofre em 1960 uma significativa alteração e introduz uma discursividade política através de um sistema próprio de inscrição de signos. Também nesses anos Paula Rego realiza as primeiras pinturas com colagens e recurso a uma forte dimensão narrativa, onde a subjectividade individual é continuamente intersectada com os signos do mundo político e cultural desses anos. As obras destes dois pintores iriam, a partir desta década, redefinir por completo o curso da arte portuguesa.