António Dacosta, Episódio com cão, 1941
António Dacosta, Episódio com cão, 1941

MNAC

entrada: Condições Gerais

Surrealismo em Portugal 1934-1952

2001-05-24
2001-09-23
Curadoria: María Jesús Ávila e Perfecto E. Cuadrado
Meio século é tempo suficiente para evocar e avaliar com rigor histórico o significado, as con­tribuições e a herança de um movimento artístico como o Surrealismo no contexto português, e constitui também pretexto ou razão de sobra para uma exposição como esta.
Os caracteres de acção grupal, de ruptura - não só artística, como também social e política - a defesa de uma suposta permanência dos princípios que animaram o movimento no seu início, baseada na ideia do Surrealismo como atitude, levou a que se considerasse o Surrealismo como um movimento atemporal e lugar de projecção de valores, tomando-se progressivamente o caminho da sua mitificação. Construía-se assim uma história que obvia­va ou esquecia problemas subjacentes à formação e dissolução dos grupos, condicionantes históricos que limitavam o movimento e até questões de qualidade artística que determi­naram generalizações simplificadoras e ponderações exageradas numa compulsão glorifi­cadora. No extremo oposto, as críticas basearam-se na tardia aparição do movimento rela­tivamente ao surrealismo internacional, na isenção de compromisso político e na fuga da realidade portuguesa. O facto de muitas delas procederem de alguns dos seus protago­nistas, daqueles que na altura se opuseram ao movimento ou de nomes que nos momentos seguintes se aproximaram dele, não ia ajudar a uma abordagem distanciada, a que muito poucos chegaram, como também não o fez a permanência latente de discrepâncias antigas entre os intervenientes - algumas das quais, embora personalizadas no âmbito português, tinham correspondência com assuntos debatidos internacionalmente e com contradições subjacentes ao próprio Surrealismo como projecto.
Com distância, é agora possível apreciar as suas deficiências e limitações, mas também as suas contribuições, que começam com a reposição do fio da história, interrompido nos anos dez, devolvendo questões da modernidade, só excepcional e individualmente retomadas nas décadas de 20-30-40, e que, se batidas no âmbito internacional, contribuíam em Portugal para uma actualização transcendental relativamente aos posteriores desenvolvimentos da arte por­tuguesa. Retomava-se ao mesmo tempo a sintonia com a arte internacional que vivia o ressurgimento do Surrealismo com o regresso de Breton do exílio, ao qual este renascimento do Surrealismo em Portugal não foi alheio. Se as questões introduzidas tinham uma clara raiz no movimento de entre-guerras, não é menos certo que se impregnavam também das novas preocupações que desde a segunda metade dos anos trinta e, sobretudo, no período do pós­-guerra, determinaram a sua reorientação. Independentemente da qualidade de cada membro - junto de figuras de escasso interesse encontramos também nomes e obras cruciais para a história da arte e da literatura portuguesa - o Surrealismo interessa pela ruptura que repre­sentou e pela tentativa de uma acção de grupo. Ainda, na via da subversão dos valores da existência, nesse desejo de subverter a sintaxe do mundo, que inevitavelmente determinava um envolvimento político, conseguiu escapar à conversão da arte em arma política de arremes­so, rompendo, por um lado, com a utilização da arte pela política oficial e, por outro, com a ideia de uma arte militante neo-realista, repondo nos discursos da época assuntos de natureza meramente artística.
Surrealismo em Portugal. 1934-1952, título que, para além da lógica explicação das suas intenções e conteúdos, merece  uma  justificação   especificamente  referida  aos  limites cronológicos que nele se indicam. Por um lado, é evidente que o Surrealismo partilhou com outros movimentos literários e artísticos da Modernidade o sonho romântico de um absoluto que, na prática artística, se dirigiria à superação das fronteiras entre saberes e discursos para a (im)possível criação de uma Obra na qual todos haviam de dialogar e entrecruzar-se até con­fundir-se na realidade simultânea de um discurso único. Mas também é certo que nem todas, nas suas particulares travessias, coincidiram no seu desenvolvimento temporal. Nas artes plás­ticas defrontamo-nos com a existência de uns prolegómenos que arrancam da obra solitária de António Pedro, iniciada em 1934 e com repercussão pública desde 1936, e, depois, con­solidadas ao longo da década de quarenta, pela mão deste mesmo artista, António Dacosta e de Cândido Costa Pinto. Até se chegar ao período compreendido entre 1947-1952, em que uma nova geração de artistas jovens dá início a uma intervenção colectiva, que se revestirá de um carácter de ruptura relativamente ao contexto português, marcando assim um ponto de inflexão na história da arte portuguesa. Acção que se estende até 1952, em que os grupos e as intervenções colectivas desaparecem e ela se desmembra em exílios, mortes e abandonos. Após esta data, o Surrealismo continuará presente no trabalho de alguns dos protagonistas desta primeira aventura e animará a produção inicial de nomes das novas gerações, que se aproximam dele, como referência vanguardista mais próxima, mas esta é já uma prática carenciada do espírito de ruptura e actualização que caracterizou este período histórico. No que se refere à literatura, sem precedentes tão fortes, é preciso destacar um "segundo momento", especialmente frutífero, que terá as suas fronteiras cronológicas entre 1958 e 1963. Da assincronia cronológica apontada reúnem-se dados suficientes nos estudos que se incluem no catálogo, e dela e da necessidade de reunir numa só exposição documentos, obras literárias e obras plásticas que nos remetem para o apontado sonho e projecto de absoluto, dão fé não só a cronologia, bibliografia e biografias finais, como também a organização da própria exposição, em que foi preciso simultaneamente salvaguardar a especificidade de cada linguagem.
Para isto, além da produção em cada área, era necessário apresentar testemunhos da trans­gressão de fronteiras nas duas direcções, da literatura para as artes plásticas, destas para a literatura, e, finalmente, mostrar trabalhos em que ambas as linguagens confluem no espaço comum de uma obra. As peças seleccionadas para esta exposição, quase duzentas, visam percorrer aquelas manifestações públicas, individuais e colectivas, independentes e de grupo, que construíram a história desse movimento em Portugal, e, ao mesmo tempo, esta­belecer as linhas transversais que as cruzam, as diferentes preocupações que as animam e as categorias que as regem tecendo um panorama de diversidade. A exposição completa-se com uma parte documental em que se reúnem primeiras edições de livros e panfletos e os catálogos das exposições mais relevantes no surgimento e consolidação do Surrealismo em Portugal.
O livro que acompanha  a exposição concebeu-se como uma “colagem", integrada pelo estudo dos comissários, mas também por alguns depoimentos, escritos da época das personagens envolvidas e revisões posteriores sobre diferentes aspectos deste episódio e sobre cada autor em particular, a fim de fornecer elementos de procedência e natureza diversa que tragam informações complementares a este trabalho. Acrescentou-se uma parte documental, que trata individualmente cada obra. No historial expositivo das peças e, seguindo a ideia que anima o projecto em geral, optámos por registar só aquelas exposições decorridas durante o período em causa. alargando-o na sua data final até 1956, isto é, até ao ano em que tem lugar a plena aceitação do Surrealismo no meio português, como bem demonstrou a concessão do Prémio do Público, no 1 Salão dos Artistas de Hoje, a um quadro surrealizante de Jorge Gamito. Deixámos de fora a participação de cada obra em mostras colectivas e indi­viduais realizadas a partir desta data que, por não contribuirem para o refazer da repercussão no período em causa, só possuem um carácter de revisão ou legitimação. De natureza mais histórica e factual, apresenta-se    uma cronologia que contempla os acontecimentos, exposições, produção de artistas e escritores, viagens, formação e dissolução de grupos, divergências internas, repercussão pública e respostas críticas. Encerra este trabalho um capí­tulo que aborda a biografia e o historial expositivo de cada um dos nomes que integram a mostra, e outro com bibliografia geral e individual, activa e passiva. Os dois últimos, sendo exaustivos, não pretendem ser definitivos e foram, portanto, sujeitos a alguma selecção. O carácter excessivamente volumoso da parte bibliográfica e o facto de existir uma discriminação individual de exposições levou-nos a não referenciar os catálogos, à excepção daquelas mono­grafias de maior repercussão historiográfica.

Maria Jesús Ávila
Perfecto E. Cuadrado