Catarina Simões, The Home Planet, 2006
Catarina Simões, The Home Planet, 2006

Sala Polivalente

entrada: Condições Gerais

The Home Planet

Catarina Simões

2006-10-27
2007-01-07

O trabalho de Catarina Simões privilegia as margens do universo da produção cinematográfica, arquitectónica ou do simples incidente e respectiva percepção para desconstruir alguns processos estruturantes destas realidades, tão significativas para a cultura ocidental contemporânea. O recurso ao vídeo permite uma linguagem característica do documentário, no entanto ao documentar as margens de contextos precisos revela uma ficção que se estende para além do objecto de produção de uma determinada disciplina, que envolve os seus próprios processos produtivos e revela outras possibilidades de reconfiguração, porventura mais críticas ou instáveis.

Na série de vídeos intitulada Tourist Observer (2003) Catarina Simões regista um conjunto de diferentes situações relacionadas com a produção cinematográfica, tais como a gravação e sucessivas repetições de takes quase todos de situações recorrentes no universo ficcional do cinema. Estas repetições acabam por tornar indefinidos os limites dos protagonistas e da cena fictícia específica para implicarem o próprio contexto de produção e registo na ficção que produzem. Em Tourist Observer o vídeo actua nos limites do cinema reformulando o enquadramento deste e desdobrando-o num dispositivo de produção ficcional também ele afectado por uma ficção. A ficção não é aqui apenas um efeito produzido e interior ao filme nem uma estrita projecção do exterior. O vídeo actua como registo da ambiguidade entre o cinema como ficção e a ficção como cinema, que produz e desrealiza as suas próprias convenções. O vídeo como ambiguidade transforma-se no movimento que oscila entre esta dicotomia e dissemina o horizonte semântico de cada asserção. 

O mais recente trabalho de Catarina Simões, ainda em fase de conclusão, intitula-se S3D. Trata-se de um filme a três dimensões, cuja narrativa apresenta uma casa inteligente que colapsa pela ausência de habitantes, e encrava num loop contínuo. Realizado em colaboração com a arquitecta Carla Leitão, que projectou a casa inteligente, o filme aborda o feedback das disciplinas que estão implicadas numa realidade arquitectónica, tal como a engenharia, sociologia, ergonomia, psicologia entre outras. Estes saberes habitualmente mitigados pelo discurso arquitectónico, mas nele participativos, retornam pelas funções inteligentes proporcionadas pela casa. A ausência de um habitante que as utilize apenas torna mais óbvias as suas possibilidades implicadas na arquitectura e simultaneamente promove a consciência da necessária inversão do papel dos seres humanos no desenvolvimento tecnológico, de objectos a sujeitos. Se a arquitectura pode ser entendida como uma fonte maior de reificação, então este trabalho pode ser considerado uma declaração política.

The Home Planet (2006), estreado nesta exposição, aborda a percepção enquanto narrativa. Partindo de um simples incidente, causado por uma invasão de formigas no atelier, Catarina Simões filmou o formigueiro vagueando através de várias taças empilhadas como uma ratoeira e sobrepôs uma voz que na narrativa dos conflitos e organizações de poder das formigas expande, por vezes, os movimentos descritivos da câmara, outras, ficciona os dados perceptivos mais objectivos, produzindo uma continuidade entre estes diferentes aspectos. Se o cenário das taças empilhadas é construído sobre uma situação casual, a sua intencionalidade revela um desejo reportável a uma ficção. A percepção do conjunto é então atravessada pelos traços que o desejo como ficção constrói. Tal como o ponto de vista da câmara muda, algumas vezes, com a introdução de gráficos quase subliminares, também os pontos de vista da narrativa verbal podem mudar e constituírem-se como monólogos das próprias formigas ou como considerações sobre o dispositivo em que o cenário se tornou no curso da narrativa. Entre o percepcionado e o ficcionado a intencionalidade é assombrada pelo desejo que a anima e pelo fantasma das relações territoriais. A construção de um dispositivo de captura torna-se metáfora do objecto produzido para a percepção e dos dispositivos da própria percepção, talvez por isso Catarina Simões refira a relação entre representação da realidade e realidade da representação como um movimento indestrinçável que anima este vídeo.

De facto é a reversibilidade entre os conceitos, situações ou objectos que o seu trabalho articula de forma a que o acontecimento possa ter lugar e escapar às determinações prévias de uma ordem do saber, de um hábito ou de uma história.

Pedro Lapa

Director do Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea