Museus e Cinema - aspectos de uma cultura de mudança
Na década de 70, algumas das principais vertentes do vanguardismo internacional foram objecto de discussão, permuta e prática cultural, num país recém libertado de uma das mais renitentes ditaduras do continente europeu.
0 exílio de uns e a resistência inteligente de outros conciliou-se após a Revolução numa emergente discussão teórica e prática dos novos desígnios da arte portuguesa. As instituições promoveram este impulso de verdadeiro questionamento, procurando desembaraçar-se de uma herdada cultura de salões, prémios e arte oficializada.
Numa década de intensa politização, os fenómenos culturais e artísticos tornaram-se prolongamentos de uma atitude enfatizada de participação, mudança e colectivismo. Tais pressupostos serviram de elemento catalisador para algumas das mais importantes acções ligadas às vanguardas, que se reviam nesta filosofia de arte/vida, como a performance, a body-art, land-art, o movimento happening, a poesia visual ou a musica e filme experimental.
As actualizadas propostas artísticas de muitos dos protagonistas da arte portuguesa de então foram, no futuro que se lhes seguiu, desvirtuadas e imobilizadas num tempo ainda mal compreendido e com muitas narrativas por conhecer. Nelas se incluem o filme experimental, que neste período foi um medium explorado nas práticas artísticas de poetas visuais como Ana Hatherly ou Eugenio Mello e Castro, de pintores como Julião Sarmento, Ângelo de Sousa, Fernando Calhau ou Noronha da Costa e do mais influente e importante operador estético da contemporaneidade, Ernesto de Sousa.
O Expanded Cinema britânico e o movimento Fluxus, foram certamente as vias de maior influencia do episódico e incoerente cinema experimental português. E se bem que estas obras não cheguem para afirmar uma continuada experimentação, tornam-se fulcrais na evolução de conceitos mais latos, no contexto de uma cultura tão resistente ao moderno e as vanguardas.
Elas apresentam, de forma diferente para cada um deles mas de modo generalizado para o estudo da vanguarda portuguesa, sintomas de uma pesquisa visual que reconheceu a importância de cruzar diferentes linguagens tipológicas, e de apostar numa clara postura de insubordinação face a oficial modernidade.
Em plena vivência de uma transformada sinalética urbana, Ana Hatherly realizou o filme Revolução (1975), trabalhando o graffiti político como poesia cinética. Estes signos textualmente contestatários foram filmicamente tratados como ritmos intermitentes de percepção, incutindo-lhes desse modo uma temporalidade metafórica associada também ela ao confronto e ruptura. Um ano antes, o projecto C.S.S. (cut-outs, silk, sand), realizado ainda em Londres, utilizava a animação para compor de novo uma sinalética gráfica. O pintor Fernando Calhau, por seu turno, abordou o suporte fílmico deliberadamente condicionado às suas possibilidades temporais materiais. Rejeitando qualquer associação, em toda a sua pratica artística, à noção de experimentalismo, afirmando antes uma metódica pesquisa "da repetição de um determinado modo de proceder" (Delfim Sardo), a influencia de Warhol é evidente no conceito estético da câmara perante o objecto. O sentido temporal é, contudo, subordinado a duração técnica estrita do filme, ao mesmo tempo que adensa os efeitos de ecrã como espaço de um vazio iniciático, ao intensificar o monocromatismo, comum alias aos restantes aspectos da sua obra.
Noutra vertente de experimentação intensa das capacidades técnicas do medium, estão os filmes do pintor Ângelo de Sousa, realizados também na década de 70. Através de uma recorrência temática consistente, as plantas, as árvores e o corpo, o pintor imbuiu-se de uma postura de trigger happiness, marcando o caracter aleatório que assiste a muitos destes filmes. No seu conjunto destaca-se uma concepção temporal sujeita a um sentido filosófico do vaguear, traduzido numa expressão fílmica de inconstâncias, levadas às últimas consequências através da possibilidade técnica de retardamento e aceleração do tempo de projeção.
O sentido aleatório dos seus filmes era continuado numa recusa da montagem como processo ulterior, antes integrando-o durante o próprio tempo de filmagem. Um "subconsciente nutrido de informação”, segundo as palavras do próprio artista, fundamentaram todo o seu processo criativo nesta area.
Apesar destes indícios, o impacto de toda uma nova interação entre o público, as novas práticas artísticas e os seus espaços de exposição não foi suficiente para uma renovação sustentada das relações entre a arte contemporânea e o público. As galerias multiplicaram-se, os museus modernizaram-se, mas o público permaneceu dividido entre práticas culturais que entende porque assimiladas pela sua importância historicista, e as que rejeita porque marginais a este conceito, logo entendidas numa óptica de subvalorização quando isentas de passado consagrado.
A despolitização da cultura e da sociedade em geral, a opacidade retrógrada de alguma da mais influente critica de arte de massas e a desorientação programática e continuada das políticas culturais, tornaram as manifestações artísticas de contemporaneidade um esforço permanente de investimento, perseverança e isolacionismo.
As razões desta endémica incapacidade foram diagnosticadas, ha duas décadas atrás, por Ernesto de Sousa, do seguinte modo: "A história da cultura portuguesa moderna é (continua a ser) uma história-sem-história, sem verdadeira evolução interna, sem continuidade. (...) A história da vanguarda em Portugal é a história de uma ausência, onde o ascetismo e a heroicidade-sem-sentido se misturam a um epigonismo inevitável, e de resto - nos melhores casos - de nenhuma importância. Seguir-lhe os meandros lógicos é colecionar peças (as únicas possíveis) de uma imensa paciência futura.”
O trabalho das novas gerações de criadores bem como de alguns dos agentes culturais tem, contudo, apesar de continuadas resistências, sido determinante para capitalizar as melhores dinâmicas herdadas, constituindo-se dessa forma como peças capitals de uma imensa (im)paciência presente.
A existência de espaços alternativos aos circuitos oficiais de exposição, bem como a diversidade informada de propostas curatoriais têm constituído sinais de uma renovação permanente. Neste contexto, se inclui também a evolução dos espaços museológicos consagrados à arte contemporânea, através da persistência de programações continuadas e consistentes atentas ao desenrolar da cena artística internacional, mas igualmente promovendo e produzindo a obra de artistas nacionais.
Não deixa de ser interessente verificar que algumas das principals vertentes da experimentação das vanguardas estejam a ser revisitadas no dealbar do século XXI, nas quais se incluem a recuperação das obras de cinema experimental a que ja aludimos, consagrando-lhes visibilidade museológica e lugar nos acervos de colecção.
A exposição do cinema experimental nos museus traduz uma atitude atenta às linguagens de ruptura, bem como a necessidade de promover o seu conhecimento e alcance cultural. Por outro lado, a constatação da importância das preocupações estéticas do cinema experimental contemporâneo toma-se fundamental para situar os modelos de trabalho criativo no campo da imagem em movimento.
Numa cultura em permanente antagonismo com as suas próprias potencialidades e um sistemático esquecimento da validade de muitos dos seus propósitos artísticos, tomar o contacto com algumas das mais pertinentes propostas de exploração do medium cinematográfico tera sempre uma redobrada importância, não só no contexto interno de revalidação do experimentalismo nacional, como numa acepção mais vasta de empenho na consolidação dos espaços de exibição da arte contemporânea.
Emília Tavares
Museu do Chiado
Robbie Land - Elaine Drive (still), 2003
© Robbie Land
MNAC
entrada: Condições GeraisIntermittent
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