Manuel Casimiro - O jardim pintado
Manuel Casimiro - O jardim pintado

Sala Polivalente

entrada: Condições Gerais

O Jardim Pintado: três montanhas e cinco montes

Manuel Casimiro

1996-01-18
1996-02-04
Curadoria: Raquel Henriques da Silva


O trabalho que Manuel Casimiro apresenta em Jardim Pintado significa uma metamorfose em relação à sua produção anterior. Longamente anunciada, mas não menos nova e surpreendente como sempre acontece com as metamorfoses.
Explicando-me melhor. Desde 1968 em que nasceu “0”,ele tem sido, na sua obra, um imperativo categórico, kunstwollen (vontade de arte), no sentido que Riegl inicialmente lhe atribui. Nessa altura, um provocatório sincretismo estético, recorrendo a Leibniz e Kant revistos pela ruptura duchampiana, Manuel Casimiro utilizou-o como signo aleatório, como número ou letra visando não compôr a frase mas religar a sua essência abstracta aos conceitos de sequência, gesto, ritmo, pura criação ab initio. O contexto é conceptual, mas desde sempre aquecido pela pregnância intuitiva dessa figura à deriva, um significante delimitando de uma cadeia de significados por inventar.
Depois, o “0” procurou os corpos volúveis de imagens referenciáveis da nossa cultura artística. Foi o mundo ainda sem movimento (ou arma de arremesso?) na mão de Jeová de Miguel Ângelo, rosto-luto de D.Sebastião de Cristóvão de Morais, sol inventado dos céus da nova pintura de Turner. O autor apaga-se, retira-se de cena substituído pelo gesto da sua marca subtil que atrai e abisma o olhar do espectador, macula a clareza de um discurso museal estabilizado, insinua uma reverberação de sentidos que, no entanto, nada proclama. Como se, sobre o excesso de um território iconográfico e estético, essa nómada viajante quisesse ser o sopro de próprio indizível da arte.
Intensamente poética e plástica, ela assume o lugar espelhante da contemporaneidade, a sua cultura sinalética onde o logos tende a ausentar-se: é sinal mas nenhuma direcção aponta. Um humor delicado e uma afectividade perturbadora percorrem estas marcas de distanciamento algo brechtiano que são também molde não preenchido de obsessivo auto-retrato: “ready-made ajudados”,  glosando a herança dessacralizadora de Duchamp a partir de um lugar próprio que aceita e prolonga o desejo maneirista de transmutar a espiral do devir artístico num ecoante círculo concêntrico, cujos intencionais descentramentos nunca significaram rebelião. Havia, por isso, um risco de deriva lírica que, em arte, parece sempre ser ameaça de morte.
Apagando os referentes que as pinturas da História lhe foram, Manuel Casimiro concentrou-se então no exercício frio das cópias inexactas, como se quisesse caçar, numa teia reticulada, os sentidos inexistentes da sua auto-imagem plástica. No entanto, ela escapava- se, animava-se um desejo objectual, anunciado no projecto de intervenção para o Beaubourg (1977) e que se concretizaria na curiosa proposta para a Ponte D. Maria (1993). Ganhava o humor, a provocação urbana, a vontade de ruído e movimento, sinais evidentes de auto-recomposição e encerramento de um círculo produtivo. Terá surgido por essa altura um novo destino para “0”. Creio que, desde sempre, a sua organicidade  plástica o vocacionava para o encontro com a vivência oriental, consubstanciada na pratica Zen. A sua origem ideográfica, o seu corpo mínima, a sua voragem contemplativa sistematizam um secreto acordo com a natureza e a memória que sobrepõem ao fluxo da História uma sabedoria que é uma espécie de matemática sagrada.
Este Jardim Pintado representa assim um estádio actual da reflexão de Manuel Casimiro. Os seus “000” converteram-se em pedras talhadas e polidas, dispostas segundo um diagrama de matriz taoísta que joga, sobre um chão mineral, com os cinco triângulos de gravilha, o jogo das cores, consistências, texturas, ritmos e luz, objectualizando o próprio da pintura que deliberadamente se (inter)rompe. Tal como aconteceu em situações anteriores, a citação do jardim Zen é uma construção de reconhecimento, mas também de subtil distanciação, criação artística e não espaço da natureza, embora seja específico da poética de Manuel Casimiro a procura estética e vivencial de uma ponte entre elas. Propondo-nos o lugar imaginário de viagem solitária que, pelas suas próprias palavras, evoquei em epígrafe.

Raquel Henriques da SIlva
Dezembro 1995