Pedro Calapez - Memória Involuntária
Pedro Calapez - Memória Involuntária

Piso 2 - Sala Dos Fornos

entrada: Condições Gerais

Memória Involuntária

Pedro Calapez

1996-11-21
1997-02-23
Curadoria: Raquel Henriques da Silva


O amor da paisagem


Na sequência de um trabalho desenvolvido em torno da recriação de modelos arquitectónicos e paisagísticos pré-existentes, Pedro Calapez aceita, com este projecto, o desafio de se confrontar directamente com um conjunto específico de paisagens de um pintor tardo-naturalista. Trata-se de uma série de onze desenhos a pastel de Sousa Pinto realizados entre 1910 e 1938, que apresentam o registo visual adequado a este movimento artístico e à representação e identificação dos lugares nomeados.
De uma forma muito simples pode dizer-se que a aproximação de Calapez a estes desenhos se estabelece em três tempos distintos, todos eles marcados pelo processo mental de ver (ou rever) a paisagem - a cópia, a deriva e a encenação de uma nova regra. O trabalho começa por uma disposição aparentemente académica. Na semelhança da atitude escolar de subordinação ao mestre, Pedro Calapez colocou-se frente a cada uma destas obras, e desenvolveu a partir do princípio da cópia, uma extensa série de desenhos, não expostos.
Aqui se podem detectar os primeiros indícios da ambiguidade do olhar que, nesta demorada sucessão de experiências, organiza as etapas iniciais de uma escolha. Trata-se de perceber o que lhe interessa ver nestas paisagens, que assim surgem aos seus olhos transformadas por uma imensa diversidade de soluções e perspectivas. É neste gesto repetido da mão que o artista vai guardar a memória, para a reconduzir a outros caminhos. O lado de artesania do "fazer a mão" encontra-se deste modo com um processo conceptual de deliberada captura de imagens.
A partir daí, inicia uma segunda etapa em que exclui o recurso visual directo a qualquer das duas referências anteriores e executa o trabalho a expor. Nesta passagem de semi-obscuridade, só as memórias construídas lhe devolvem as imagens que melhor se encontram com o seu traço. Como se o caminho dessa memória fosse unicamente iluminado pela capacidade de resolução plástica do seu próprio conhecimento.
Aquilo que se podem chamar os caminhos de deriva e que correspondem ao trabalho de "reconstituição" das paisagens de Sousa Pinto, são afinal os caminhos que permitem a Calapez clarificar o seu modo de ver. Mais importante que o registo de cumplicidade com o modelo, ou o hipotético sistema de equivalências dos respectivos pontos de chegada, parece ser o ponto de partida para um novo exercício do olhar.
Pedro Calapez não pretende uma intervenção directa e provocatória, nem deseja agora a criação de uma instabilidade ou de uma desconstrução. Realiza uma acção lenta, fraccionada, em que o tempo é um protagonista fundamental. É no correr deste tempo que deixa agir em simultâneo a memória e o esquecimento, até que se definam os contornos de uma selecção. É também nesta passagem, designada pelo artista por "memória involuntária", que aceita o confronto entre os dois tempos da história, (com o incómodo de enfrentar as soluções tardias e académicas do pintor naturalista) e arrisca a criação de um novo conceito paisagístico.
Na linha de continuidade do seu processo de trabalho, Calapez fixa o campo de visão nas paisagens descritivas de Sousa Pinto, para construir espaços intemporais e indeterminados. Nesta extensa série de telas, de dimensões e espessuras variáveis, livremente desenvolvidas e desmultiplicadas, encontram-se naturalmente ausentes quaisquer elementos narrativos ou ficcionais.
Algumas sugestões de arquitectura doméstica são aproveitadas - pequenos pátios ou quintais, traçados interrompidos de ruas ou de casas - e reconduzidas em sucessivas versões, para urna total transformação de escala e de sentido. Estamos perante vagos espaços arquitectónicos e de uma natureza parcelar, que não comportam a presença humana ou animal.
O artista esvazia a identidade dos lugares que Sousa Pinto, embora com assinalável liberdade de composição, se esforçou por representar e caracterizar. Com bastante facilidade conseguimos contudo reconhecer algumas destas citações, alguns dos elementos que serviram a memória e a selecção do olhar. São quase sempre os aspectos da paisagem que melhor perspectivam exercícios de fuga ou deriva. Calapez detém-se com frequência nos pequenos ramos que se desviam da matriz das árvores, nos troncos que se inclinam, nos pequenos acidentes naturais, os trilhos irregulares, os cursos de água que se dividem, os caminhos de incerteza.
Entre o trabalho de Sousa Pinto e o de Pedro Calapez há uma nítida inversão de valores paisagísticos. O pintor naturalista toma a paisagem como um todo, em que os elementos componentes se organizam em função do reconhecimento e de uma unidade designável. Vai ao encontro de uma paisagem habitada por sentidos articulados e estáveis, constrói uma entidade viva e coerente. Calapez age no sentido de eliminar qualquer expressão de realidade. Elegendo o fragmento, desenvolve espaços imaginários em que os traçados labirínticos destas formas acidentais, definem afinal o cenário do seu pensamento visual, no registo mínimo de sentido que o desenvolvimento do seu trabalho tem revelado.
O modo de o fazer reforça claramente estes valores. O conjunto de obras expostas apresenta uma nítida sobreposição e articulação de dois planos distintos. Sobre o fundo matérico e indefinido de uma intensa superfície cromática, o artista faz sobressair linhas de cor mais explícitas, que sugerem o contorno evasivo de formas e objectos. Se estes sinais nos permitem identificar elementos referenciáveis às paisagens de Sousa Pinto, assim inscritos, intensificam e materializam formas de transparência e de irrealidade. Eles fazem vibrar e configurar os fundos espessos e luminosos, ao mesmo tempo que expandem a sua ausência de conteúdo e impossibilidade matérica.
O modo de encenar a apresentação do trabalho contradiz toda esta aparente desordem e imprevisibilidade. Percebe-se aqui claramente a necessidade de reconstituir uma ordem. Calapez parte de um tempo histórico e de uma unidade de medida específicos. A partir do conjunto de onze desenhos de Sousa Pinto, o autor realiza quatro blocos, constituídos (também) por onze peças de dimensões aproximadas. As obras que integram cada um destes blocos apresentam quatro espessuras diferentes. A organização da montagem em cada uma das quatro paredes do espaço da instalação obedece a uma lógica rigorosamente visual, com as telas agrupadas e sobrepostas em dimensões e espessuras variáveis. Deste modo, a ordenação do conjunto desenvolve e complexifica o princípio numérico enunciado, ao mesmo tempo que faz a citação do seu tempo histórico, no simulacro de uma montagem de insinuação oitocentista. As regras ficam assim estabelecidas, como suporte de uma nova ordem paisagística.
As soluções espaciais adoptadas para a montagem dos trabalhos dos dois autores, acentuam a marcação teatral, que tem acompanhado as mais recentes produções de Pedro Calapez. Convoca-se de modo determinante a presença física do observador que, ao entrar no espaço da instalação onde se encontram isoladas as telas deste artista, fica encerrado numa caixa de clausura, de intenso cromatismo e de absoluta eficácia visual. É-lhe ainda oferecida a possibilidade de decifrar formas e pormenores, recorrendo às paisagens de Sousa Pinto, intencionalmente colocadas do lado de fora, no espaço aberto da galeria do museu.
O sentido de espectáculo torna-se evidente, e o visitante poderá, se assim quiser, percorrer os caminhos dessa interpretação, para se deixar enredar pela sedução de uma habilíssima trama de enganos e sugestões.
Desde sempre estimulado pelo encontro de tempos históricos diferentes, Pedro Calapez tem realizado, com esta soma de desvios e ausências, a afirmação do desejo de outra existência. Para cada imagem do mundo, o artista constrói o seu duplo e arrisca a criação de novos conceitos representativos.
À margem de soluções mais directas, ideológicas ou pragmáticas, ele reinicia, no dobrar dos anos noventa, um processo de ver a paisagem, em que os modelos construídos e referendados transportam sentimentos de nostalgia e de perda, de uma natureza em queda.

Maria Helena de Freitas