VIAGEM A INDIA E OUTROS PERCURSOS
"Oh exultante
exaltante festa do tumulto sorri
sorri-me ",
Ana Hatherly, Volúpsia, 1994
Compreendi, ou senti, a razão de ser desta exposição quando a Ana me falou da sua viagem à Índia. Evocou-a naquele seu estilo tão especial, controlado e afirmativo, o lado exuberante da professora notabilíssima, mas, simultaneamente, hesitante, quase secreto, o lado da artista que, mesmo nas fases de construção programática, sempre amou “a exaltante festa do tumulto". Na Índia, (re)encontrou-a na elegância antiga dos corpos e dos gestos, no excesso dos cheiros, sobretudo nas cores evanescentes, timbres e movimentos mais do que tons, dos saris das mulheres.
Daí nasceu (renovou-se) uma “perturbação interior” colando-se a emergências anteriores onde o júbilo da cor se manifesta como indagação. De facto, num percurso consagrado pelo branco da folha da escrita e o negro-vórtice das inventadas caligrafias, algumas vezes o cromatismo se manifestara, ora suporte, ora corpo interactivo de bandas delineadas, com valor de uso bem distinto dos cartazes-colagens de As ruas de Lisboa (1977) ou das alegres cores-objecto de certas composições concretistas. No entanto, mesmo nas experiências mais livres, como acontece no "livro" Ana 73, agora exposto, havia, por parte da artista, uma espécie de pudor, de sensualidade contida, que agora irrompe em gesto amplo.
Nos casos mais veementes dos padrões feitos das memórias coloridas da India, a cor tornou-se cúmplice de um desejo de pintura composta em subtis rimas onde, se se quiser, pode adivinhar-se uma afectiva transposição da sua escrita plástica. Eu prefiro frui-las na imediatez da feitura e considerá-las impressões libertárias, auscultando-lhes o pulsar indagante da autora que sempre preferiu a figura do labirinto para exprimir a "imprecisão" ou a "obliquidade" do conhecimento.
Em "outros percursos", que aqui acompanham a "viagem à Índia", são mais claros os nexos com o obsessivo trabalho sobre a escrita da produção anterior, por exemplo nas excepcionais Idade do Ouro, da Prata e do Bronze (1993) mas insinua-se também uma saudade de apaziguamento, através do assumido tocar na realidade, das coisas, como em Nuvens (1996), ou da literatura mítica, como No jardim das Hespérides os pomos são de oiro (1995). Aliás, o uso de títulos, cifrados ou requintadamente eruditos, manifesta, desde logo, uma passagem de território, conotável com a obra poética e ensaísta de Ana Hatherly, como se uma sabedoria a habitasse, feita de estilhaços nostalgicamente urdidos.
Findo o tempo da experiência, ela flui agora não já na inventada carne da escrita mas num magma que lhe é anterior, tempo antigo, conotável com a arte chinesa, feito de indícios mínimos e preciosos que se clarifica quando comparamos os valores manchistas de Um prodígio te aguarda ou Cântico do mar profundo (1996) com o despojamento pontilhado de Precious Art do mesmo ano. Mas a par desta criação metafórica do vazio,
Como instância última do conhecimento, aflora A rosa escrita de um do livros recentemente iniciados ou Os dentes de Cadmo, de outro de 1993, onde, em páginas seguintes a artista compõe uma estilizada figura feminina de rosto sem oIhos nem boca, uma máscara branca que é um auto-retrato expectante. Porque Ana Hatherly não pretende libertar-se da História que a institui mas tão somente rasgar mais ainda, depois dos papeis das suas Roturas dos anos 70, os véus das disciplinas, dos saberes e das culturas. Na India, ela encontrou a confirmação do que estava evidentemente dentro de si: não basta ao artista construir o mundo porque a "exultante / exaltante festa do tumulto" um dia toma conta de nós com o seu sorriso inocentemente perverso. É desse tempo de tréguas que se trata aqui.
RAQUEL HENRIQUES DA SILVA
Dezembro 1996

MNAC
entrada: Condições GeraisViagem à Índia e Outros Percursos
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