MNAC

entrada: Condições Gerais

Airbag: the return of the real

Entertainment & Co.

1998-11-28
1999-02-21
Curadoria: Pedro Lapa
ACERCA DE FESTAS, TRAUMAS, PESSOAS E FANTASMAS
Pedro Lapa

É isso mesmo, o que estão a pensar! Trata -se de uma verdadeira discoteca instalada no museu. Está lá tudo: uma bola de espelhos a girar, no centro da sala; uma zona de dança delimitada por um tapete de borracha com boa aderência; colunas de som com ritmo drum ’n’ bass; luz confusa emitida por quatro projectores vídeo mais as respectivas projecções distorcidas nas paredes ou estilhaçadas de encontro à bola de espelhos. A animação fica por conta dos artistas, que durante algum tempo servem bebidas no bar da discoteca.
Não se trata, portanto, de representar uma discoteca, mas de a reproduzir, o que é diferente. A representação seria a consequência da sua apresentação circunscrita a um qualquer medium (pintura, escultura, vídeo, fotografia, etc.) e reenviaria para um referente. Também não estamos perante uma simulação, composta por alguns significantes mais ou menos característicos da discoteca. De facto, este trabalho reproduz uma discoteca que pode ser usada como tal, se bem que a deslocação de contexto - a sua instalação num museu - seja deveras significativa. O processo é por isso semelhante ao ready-made, todavia o objecto deslocado comporta ele mesmo um outro desvio extremamente significativo, oposto à indiferença a que o próprio ready-made foi submetido  por uma cultura tardo-capitalista. Esta reivifica o valor de troca do objecto através da mais-valia do significante "arte", fazendo assim um percurso inverso ao valor de uso inicialmente proposto por Marcel Duchamp.
O desvio que, neste caso, a discoteca sofre, retira-lhe o carácter aleatório do mercado restituindo-lhe um específico valor de uso, ideologicamente fundado. As imagens projectadas por toda a discoteca devolvem uma inesperada dimensão comunicativa com o próprio mundo. O testemunho que estas imagens revelam de aspectos contraditórios e cínicos das sociedades contemporâneas, captadas através de zappings pelos noticiários e reportagens de diversas cadeias de televisão, aliado ao facto da sua apresentação ser efectuada num espaço de festa e lazer, consagrado pelo final de século ocidental, desenvolve uma tensão extrema. O real é então percepcionado num contexto de diversão; o seu modelo de apresentação definido pelos padrões de show-biz redu-lo a uma sucessão de significantes, esquizóide, em que tudo se equivale.
Num primeiro momento a mediação de um pensamento crítico, que a informação suscita para poder significar, é rasurada e brutalmente submetida à condição de espectáculo. No entanto, a consciência deste fenómeno torna-se, nesta instalação, declarada. O real é então devolvido por imagens que se nos revelam críticas e complacentes, afectivas e desafectadas. A sua sucessão forja uma repetição compulsiva que a produção da discote­ca enquadra dentro dos códigos visuais da cultura contemporânea e a sua irrupção torna-se fantasmática. A desrealização para que o real é remetido só tem como retorno a sua condição de estranho (das Unheimlich de Freud) ou seja, uma forma traumática que implica e afecta o sujeito (Hal Foster). Nesta oscilação em que sujeito e real estão envolvidos o que regressa não é tanto uma afecção do real, circunscrita a um sujeito específico, mas são as suas condições de apresentação que se revelam traumáticas, para utilizar aqui o termo de Hal Foster. A sua tangibilidade está então na discoteca, o lugar de recepção e codificação. A projecção das imagens de encontro à bola de espelhos da discoteca e os respectivos estilhaços são a metáfora mais acabada desta condição de visibilidade em que a percepção do real se tornou nas sociedades tardo-capitalistas.
Garantida a disseminação do real, só a devolução ou seja, a repetição das condições de percepção, no-lo pode devolver na sua inimaginável violência, total amoralidade e decla­rada casualidade. Mas é claro que temos sempre onde nos amparar dentro de uma discoteca, não é?